Sem dúvida, os maiores craques da crônica esportiva brasileira foram José Lins do Rego e os irmãos Mario Filho e Nelson Rodrigues. Se não fossem da mesma geração poderiam ser comprados a Friedenreich, Leônidas e Pelé ou Domingos, Zizinho e Garrincha. Mas contemporâneos podem ser comparados ao meio-de-campo formado por Clodoaldo, Gérson e Rivellino . Infelizmente, os três não tiveram sucessores à altura, apesar da qualidade de João Saldanha, Armando Nogueira e Luis Fernando Veríssimo, por exemplo, e da profusão de craques que se sucedem dentro das quatro linhas. Para Nelson Rodrigues, o mais passional, exagerado e genial deles, foi Mario quem "inventou" a crônica esportiva brasileira, assim como a mítica do Fla-Flu. Para tanto, ampliou o espaço do futebol na imprensa e deu-lhe uma linguagem própria, em que "a palavra era viva, úmida, suada". Tudo começou quando Mario publicou uma longa entrevista com o goleiro Marcos de Mendonça, em 1926. Anos depois, já chefe de esportes de O Globo, foi dirigir, antes de comprá-lo, o Jornal de Sports, onde montou uma tribuna em defesa da construção de estádio municipal no bairro do Maracanã. Daí, após sua morte, o maior estádio de futebol do mundo ter recebido seu nome, numa justa homenagem. Para o irmão, Mario era "um desses homens fluviais", dos que banham e fertilizam gerações, e deveria ter sido enterrado no Maracanã, pois merecia "que o velassem multidões imortais". Enquanto Nelson era torcedor fanático e declarado do Fluminense, Mario parecia nutrir uma paixão secreta e platônica pelo Flamengo. Às vezes parecia tentar se justificar: "Por que o Flamengo tornou-se o clube mais amado do Brasil? Porque o Flamengo se deixa amar à vontade". Dizia, também, que fora tricolor só até 1928, quando passou a torcer pelas seleções brasileira e carioca. Segundo conta Ruy Castro, um dos netos de Mario Filho achava que o avô fosse rubro-negro, pois vibrava mais com as vitórias do Flamengo. Mas se Mario "inventou" a crônica esportiva, Nelson criou as personagens, imagens e expressões mais perenes. Por exemplo: o "Sobrenatural de Almeida", responsável pelo inexplicável no futebol; a "grã-fina de narinas de cadáver", que, em pleno Maracanã, costumava indagar "quem é a bola?"; o ceguinho tricolor, seu álter-ego; o óbvio ululante; a burrice do vídeo-teipe e dos intelectuais, verdadeiros "idiotas da objetividade" e seres incapazes de cobrar um mísero lateral e muitos outros. José Lins do Rego - Zelins, para os amigos - escreveu mais de mil crônicas esportivas no Jornal dos Sports, além de um romance ligado ao futebol, Água-mãe. Lamentava ter descoberto o futebol apenas aos 37 anos, quando o Brasil foi terceiro lugar na Copa de 1938. Era apaixonado pelo Flamengo. Não se constrangia em afirmar "vou ao futebol e sofro como um pobre-diabo" e assistir diariamente aos treinos do Flamengo. Certa vez, Zelins chamou o treinador do Vasco de "caviloso", o que gerou uma série de mal-entendidos e o levou a conhecer a fúria de sua torcida. Sobre o episódio, o próprio Zelins escreveu: "A um escritor muito vale o aplauso, a crítica de elogios, mas a vaia, com a gritaria, as laranjas... os palavrões, deu-me a sensação de notoriedade verdadeira". Noutra oportunidade, também em Soa Januário, envolveu-se numa briga com policiais e acabou preso, o que se repetiu durante a Copa de 1950. Mas Zelins não era apenas um torcedor apaixonado pelo Flamengo. Foi um de seus dirigentes e presidiu delegações do clube em viagem ao exterior, quando descobriu que o futebol já era produto de exportação equivalente ao café, e promoveu campanha financeira para o Brasil ir à Copa de 1954, após rebordosa de 50. Foi através de Zelins que Mario Filho conheceu alguém que o influenciaria de forma definitiva: o sociólogo e escritor Gilberto Freyre. De tal relação resultou o prefácio de Freire para O negro no futebol brasileiro, um clássico da historiografia e sociologia acerca do tema e seu livro mais importante. E ambos, de certa forma, serviram aos propósitos de Getúlio Vargas de usar o futebol, assim como samba, para construir nossa identidade nacional. O jornalista Ruy Castro selecionou crônicas de Mario Filho em O sapo de Arubinha e de Nelson em À Sombra das chuteiras importais e A pátria em chuteiras. Nelson Rodrigues Filho organizou O profeta tricolor, com crônicas do pai sobre o Fluminense. O escritor Edilberto Coutinho pretendia fazer o mesmo com Zelins e chegou a lançar Zelins, Flamengo até morrer, com resumos de várias crônicas, que serviram de base para Flamengo é puro amor, organizado por Marcos de Castro. Já os vários livros de Mario Filho, o mais profícuo deles, estão fora de catálogo. Mas nem tudo está perdido. Ademais, as crônicas e livros desses craques vêm sendo "descobertos" por estudantes de pós-graduação e ganhando análises mais acadêmicas. Felizmente, alguns dos estudos estão sendo publicados e não ficarão restritos às bibliotecas universitárias. O mais novo é Com brasileiro, não há quem possa! Futebol e identidade nacional em José Lins do Rego, Mario Filho e Nelson Rodrigues, em que a autora, Fátima Antunes, usa crônicas para revelar a contribuição de cada um - em especial a alquimia usada por eles - para a caracterização e difusão do estilo brasileiro de jogar o chamado esporte bretão, ou seja, o que hoje chamamos de "futebol-arte". Mostra ainda como Gilberto Freyre está na origem das idéias sobre caráter e identidade nacionais, tão em evidência nos anos 30, que permeiam os textos analisados. De fato, é relevante destacar que Freyre abordou de forma recorrente a transformação do apolíneo futebol britânico no dionisíaco futebol brasileiro e travou estreita relação pessoal e intelectual com nossos três craques. E o livro, resultado de uma tese de doutoramento em Sociologia na USP, além de recuperar dezenas de crônicas, dá, enfim, aos textos esportivos de Mario Filho, Nelson e Zelins a dimensão e a importância que devem ter. Imperdível para os amantes e estudiosos do já tão brasileiro esporte bretão. Texto de Túlio Velho Barreto - Cientista Político e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco - (Publicado no Jornal do Brasil - Rio de Janeiro, em 11/12/2004 - Seção Idéias - página 06)
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