Texto e foto de Marcos Vinicius Cabral
"Há quase 730 dias que estou recluso, deitado no fundo de um barco vazio e, introspectivo, no meio de um mar chamado frustração. De olhos fechados não observo nada ao redor e nem me vejo. Apesar das ondas molharem as pontas dos meus dedos das mãos a fim de provocar em mim a desatenção que o destino quer, permaneço intocável e insensível. E continuo de olhos fechados! Mas perco a beleza da vida quando não vejo o céu azul com as nuvens parecidas com algodão, não sinto o calor do sol que esquenta meu corpo, e não ouço o ruído das asas das gaivotas que ensaiam o balé contumaz que nada mais é, para quem aprecia com moderação as belezas da vida, do que a personificação de um voo para um lugar distante.
A cena, por mais absurda que pareça, me faz conviver com o som imperturbável do silêncio. E é em cada um destes sons, que sinto a presença e a ausência que meu pai faz.
Meu pai nunca gostou do nome de batismo e sempre que perguntavam "como o senhor se chama?", ele desconversava e respondia "José". Na verdade, era o sobrenome dele. Mas o ele gostava de verdade era em ser chamado pelo apelido de Alicate que, segundo ele mesmo, foi herança dos tempos de quartel quando vivia indo buscar alicate na oficina a pedido dos sargentos, tenentes e coronéis. Daí, de tanto pegar alicate para os superiores, transformou-se em um e carregou a alcunha até a nefasta tarde do dia 18 de janeiro de 2022, último dia de vida dele.
Mas a ausência de Alicate na minha vida me recoloca, sempre que lembro dele e dos entreveros que tivemos na difícil e conturbada relação pai e filho, no fundo daquele barco. É lá, que vira e mexe, estou com os olhos fechados, alisando a 'testa' do mar e lembrando dos momentos que passei ao lado dele.
Alicate viveu a vida com a tranquilidade de quem dirigiu por muito tempo um táxi. Acreditava em Deus e não deixava o medo de morrer ser maior do que as risadas que deu com muitos outros taxistas nos PA's por onde deixou saudades. Era alternância nas pequenas coisas. Vivia o opróbrio com pombos, detestados por ele, mas era capaz de jogar pipocas para as desprezadas aves do quintal de casa e, com esta atitude, tornava-se um zeloso columbófilo para quem via a cena. Não se preocupava em cuidar da saúde e acabou surpreendido por um infarto agudo do miocárdio.
Destemido, às vezes, confesso, Alicate era engraçado. Inteligente demais. O que se colocava as mãos para fazer, executava com a perfeição da falta cobrada por Zico no ângulo. Ou melhor, cobrada por Roberto Dinamite, ídolo dele já que era vascaíno por convicção.
Mas no próximo dia 18 de janeiro, o luto pelo desaparecimento físico do meu pai completam dois anos. São janeiros que lembro sempre, pois Deus me trouxe Gabrielle, minha adorável filha, e levou meu pai, lembrado e amado por todos. Ironias de um destino que Deus, sabe-se lá por qual motivo, permitiu acontecer. Não reclamo. Nem posso. Resta-me aceitar.
Mas quando Deus percebe minha aflição e nota tristeza em meu olhar, permite que sonhe com meu pai. Até certo ponto, isto desacelera meu coração, conforta meu espírito, e faz seguir em frente. No entanto, quando o efeito do conjunto de imagens, de pensamentos ou de fantasias que se apresentam à mente durante o sono acaba com o nascer do sol na manhã seguinte, caminho lentamente para o cais, retiro a corda do barco, deito no fundo dele, fecho os olhos e vou contemplar a beleza do vazio das coisas que me circundam.
É ali, no silêncio das minhas ações que meu pai - que ironicamente preferia o som das coisas - está. Isto é o suficiente. E é, não tenho dúvidas, um bálsamo para essa dor aqui dentro de mim que se chama saudades".